09 dezembro 2011

"Eu sou minhas histórias"

Franz Kafka. Meu autor preferido, dentre vários preferidos.

De origem judaica, nasceu em Praga no dia 3 de julho de 1883. Durante seus 40 anos de vida, a cidade pertenceu à monarquia austro-húngara. Neste contexto, Kafka vive o fervor nacionalista centro-europeu e escreve em alemão. Em sua adolescência, declara-se socialista e ateu. Cursa, por escolha do pai, Direito e passa a trabalhar em uma companhia de Seguros. Desgostoso desta rotina, dedica-se à literatura. Morre em 1942 doente e tuberculoso. A maior parte de suas obras foram publicadas postumamente e "contra a sua vontade". Pois, em seu testamente pede à Max Brod que queime todos os seus manuscritos (o que não ocorreu, para o nosso bem!).

O drama kafkiano é o drama de um membro de uma família pequeno-burguesa. Seu olhar, é direcionado a coisas como a opressão burocrática das instituições, a "justiça" e a fragilidade do homem comum frente ao cotidiano. F. Kafka desenvolveu o tema do "absurdo", estruturado por Dostoievski e também desenvolvido por Albert Camus em um sentido mais imanente.

Esta foi uma "curta" introdução sobre o autor, pois a real intenção é postar uma de suas curtas narrativas:

DIANTE DA LEI

"Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chaga a esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem reflete e depois pergunta se mais tarde o deixarão entrar.

− E possível − disse o porteiro −, mas agora não.

Uma vez que a porta que da lei continua como sempre aberta e o porteiro se põe de lado o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso o porteiro ri e diz:

− Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala existem porteiros cada qual mais poderoso do que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro.

O homem do campo não havia previsto tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com seu casaco de pele, o grande natiz pontudo, a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro dá-lhe um banquinho e permite-lhe sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem que havia se equipado com muitas coisas para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que sea, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:

− Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.

Durante todos esses anos o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos amaldiçoa em voz alta e desconsiderada o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está ficando mais escuro em torno ou se apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece agora no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem:

− O que é que você ainda quer saber? − pergunta o porteiro. − Você é insaciável.

− Todos aspiram à lei − diz o homem. − Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?

O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra:

− Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a."

KAFKA, Franz. Um médico Rural: pequenas narrativas; tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.